Competência da polícia militar à luz do código de trânsito brasileiro
Competência da polícia militar à luz do código de trânsito brasileiro

Por: Alcio Vargas Costa Sampaio

Publicado em

Alcio Vargas Costa Sampaio

O presente artigo trata da competência da Polícia Militar na execução do policiamentoostensivo de trânsito e da fiscalização, com o advento do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), instituído pela Lei Federal 9.503, de 23 de setembro de 1997, que entrou em vigor em 22.01.1998, trazendo enormes contribuições para um trânsito mais humano e seguro, além de ter dado umsentido de maior rigor na fiscalização e punição aos infratores da legislação de trânsito. Hoje, já totalizamos 40 leis que alteraram o CTB, sendo a sua última a Lei 14.157/21.

É importante destacar, que as Polícias Militares do Brasil, antes mesmo da vigência da Lei 9.503/97(CTB), já realizavam praticamente todas as atribuições do policiamento ostensivo e fiscalizaçãode trânsito em todas as cidades do país, sem que para isso houvesse qualquer previsão na revogada Lei 5.108, de 21 de setembro de 1966 (Código Nacional de Trânsito-CNT), e no seu regulamento (Decreto n. 62.127, de 16 de janeiro de 1968 – Regulamento do Código Nacional de Trânsito-RCNT).

Em cada Estado da Federação, incluindo o Distrito federal, existe a Polícia Militar, sob o comando dos governadores, que atuam na execução do policiamento ostensivo e preservação da ordem pública, respaldadas na Constituição Federal de 1988, precisamente no seu Artigo 144, inciso V, § 5º:

Art. 144 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos seguintes órgãos:

(…)

V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.

(…)

§ 5º – Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; 

(…)

De igual maneira, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, já era previsto no plano infraconstitucional, o Decreto-Lei 317 posteriormente substituída pelo Decreto-Lei nº. 667, de 02.07.69, que reorganizou as Polícias Militares,dispondo no seu Art. 3º, alínea “a”, o seguinte:

Art. 3º Instituídas para a manutenção da ordem pública e segurança interna nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, compete às Polícias Militares, no âmbito de suas respectivas jurisdições:

a)executar com exclusividade, ressalvadas as missões peculiares das Forças Armadas, o policiamento ostensivo, fardado, planejado pela autoridade competente, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderesconstituídos.

Ademais é oportuno acrescentar que o Decreto Federal nº. 88.777, de 30.07.83, que aprovou o Regulamento para as Polícias Militares e Corpos deBombeiros Militares (R-200) no seu Art. 2º, definiu policiamento ostensivo:

“Ação policial, exclusiva das Polícias Militares em cujo emprego o homem ou fração de tropa engajados sejam identificados de relance, quer pela farda quer pelo equipamento, ou viatura, objetivando a manutenção da ordem pública”.

Cabe ressaltar que este mesmo decreto,especifica o policiamento de trânsito como um dos tipos de policiamento ostensivo.

Segundo a doutrina, há de se deduzir com facilidade que o policiamento ostensivo de trânsito e a fiscalização de trânsito, uma de suas formas de atuar para prevenir e reprimir as infrações e evitar acidentes está vinculado à preservação da ordem pública.

De acordo com o previsto no Decreto-Lei nº. 667, de 02.07.69, ordem pública é “conjunto de regras formais que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum.”.

Do disposto acima, verifica-se que, tanto nas ações de policiamento ostensivo quanto nas de fiscalização, o trânsito está, de certa forma, relacionado ao conceito de ordem pública, e à Polícia Militar cabe, por força de lei, a preservação da ordem pública, devendo de imediato reprimir os atos que, de fato, venham a prejudicar ou interferir na normalidade do trânsito. 

Sobre o assunto, bem nos explica o CoronelMarlon Jorge Teza da Polícia Militar de Santa Catarina, em um excelente artigo proveniente de monografia apresentada no CEPGESP – CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM POLÍTICAS E GESTÃO DE SEGURANÇA PÚBLICA – Brigada Militar do RS.:

Como visto, o trânsito está, de certa forma, intimamente relacionado à conceituação de ordem pública e perturbação da ordem pública. Para maior compreensão, podemos afirmar que: se nas vias públicas a circulação de veículos e de pessoas ocorre dentro das regras de circulação e, portanto, com a devida segurança há ordem. Contudo ocorrendo qualquer fato que venha a prejudicar ou interferir no normal funcionamento do trânsito estará presente a quebra da ordem, ou seja, houve a perturbação da ordem.

Compreendido tal conceituação, podemos afirmar que a Polícia Militar sempre atuaráostensivamente no trânsito, para o restabelecimentoda ordem pública, quando quebrada, oupreventivamente, para evitar a quebra da ordem pública, através do policiamento ostensivo de trânsito.

Entendemos ter sido necessário trazer inicialmente uma contextualização sobre a missão das polícias militares sob o ponto de vista legal, para que pudéssemos esclarecer aos leitores, principalmente aqueles que não são do meio policial, o porquê das polícias militares terem exercido por muitos anos a nobre missão de execução dopoliciamento ostensivo de trânsito e a fiscalizaçãodas infrações, mesmo não estando inseridos nas legislações de trânsito pretéritas, como agentes de fiscalização.

Atualmente, as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal, são órgãos componentes do Sistema Nacional de Trânsito (SNT), conforme o constante no artigo , inciso VI, do Código de Trânsito Brasileiro, como órgão fiscalizador.

Em relação à competência da Polícia Militarpara atuar na fiscalização de trânsito, o Código de Trânsito Brasileiro estabeleceu no seu Art. 23, inciso III (único que não foi vetado pelo executivo federal) que compete às Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal “executar a fiscalização de trânsito, quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados”. 

Para um melhor entendimento da competência da Polícia Militar no trânsito, é imperioso fazermos uma distinção entre Policiamento Ostensivo de Trânsito e Fiscalização, constantes no Anexo I do CTB, para que possamos avançar no entendimento do assunto, pois muitos entendimentos equivocadosgravitam em torno da inobservância dessas definições:

FISCALIZAÇÃO: é o ato de controlar o cumprimento das normas estabelecidas na legislação de trânsito por meio do poder de polícia administrativa de trânsito, no âmbito de circunscrição dos órgãos e entidades executivos de trânsito e de acordo com as competências definidas neste Código. (Anexo I do CTB)

POLICIAMENTO OSTENSIVO DE TRÂNSITO: função exercida pelas Polícias Militares com o objetivo de prevenir e reprimir atos relacionados com a segurança pública e de garantir obediência às normas relativas à segurança do trânsito, assegurando a livre circulação e evitando acidentes. (Anexo I do CTB)

Verificamos que no conceito de Fiscalizaçãoconsta a palavra poder de polícia, que não se confunde com o poder da Polícia, e mais, o seu exercício não é exclusividade das Polícias. O poder da polícia (Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal), já consta na própria CF/88, e ainda, nas leis e decretos de suas criações; já o poder de polícia, é inerente a toda a administração, exercida por intermédio dos seus prepostos/agentes nas mais diversas atividades (v.g., ambiental, sanitária, fazendária, receita, órgãos e entidades de trânsito ou rodoviários).

Para ilustrar melhor essa diferenciação entre poder de polícia e poder da polícia, o mestre e doutrinador em Direito e legislação de Transito, Julyver Modesto de Araújo, Major da Reserva da briosa Polícia Militar do Estado de São Paulo, em sua fantástica obra LIÇÕES DE DIREITO ADMNISTRATIVO PARA OS PROFISSIONAIS DE TRÂNSITO (1ª Edição), assim se posiciona:

Poder DE polícia não deve ser confundido com poder DA polícia, de vez que, enquanto este é designativo da autoridade atribuída a algum órgão POLICIAL (integrante da segurança pública), quando nos referimos ao Poder DE polícia, estamos a tratar de uma ferramenta inerente à função administrativa, o que significa que TODA a Administração Pública o possui, sendo certo que sua utilização ocorrerá na medida em que se fizer necessário conter determinadas liberdades individuais (sempre no âmbito da respectiva circunscrição e no exato cumprimento das competências legais). 

O poder de polícia não é foco deste artigo, dada a sua complexidade e peculiaridades, mas para não deixarmos os leitores sem uma conceituação sobre o assunto, ficamos com o conceito elaborado pelo insuspeitável administrativista Hely Lopes Meirelles(Direito Administrativo Brasileiro. 41ª º Edição):  

Poder de polícia é a faculdade de que dispões a administração pública para condicionar e restringir o uso, e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio estado.

Em linguagem menos técnica, podemos dizer que o poder de polícia é o mecanismo de frenagem de que dispõe a administração pública para conter os abusos do direito individual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda a administração, o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à segurança nacional.

Assim, no trânsito, policiamento ostensivo de trânsito não se confunde com a fiscalização. Nesta, a polícia atua em nome do órgão executivo de trânsito ou rodoviário, quando e conforme convênio firmado, e no policiamento ostensivo de trânsito, não há necessidade de convênio, pois a PM atuará dentro de sua competência prevista na Constituição federal.

Existe, entre alguns doutrinadores, o entendimento de que é indissociável a fiscalização de trânsito do policiamento ostensivo de trânsito, até porque não se podem reprimir atos contrários à segurança do trânsito, e nem controlar ocumprimento das normas estabelecidas na legislação de trânsito, sem que para isso o policial militar esteja credenciado ou designado para tal mister. 

Talvez o aspecto mais importante trazido pelo artigo 23 do CTB esteja relacionado à necessidade de convênio firmado, como agente do órgão ou entidade de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados, para que o policial militar possa executar a fiscalização dentro da legalidade. Sem convênio firmado, a Polícia Militar não poderá lavrar as autuações diante das infrações de transito constatadas durante as operações de fiscalização (blitz, bloqueios policiais, operações comando, barreiras, pontos de fiscalização) ou em abordagens policiais rotineiras.

O artigo 25 do CTB estabelece que Os órgãos e entidades executivos do Sistema Nacional de Trânsito poderão celebrar convênio delegando as atividades previstas neste Código, com vistas à maior eficiência e à segurança para os usuários da via”.

Depreende-se desse dispositivo, que caso algum órgão ou entidade executivo de trânsito ou rodoviário (DETRAN, IMMU, DER) intencione em delegar alguma de suas competências á Polícia Militar, como a fiscalização, por exemplo, o mecanismo legal é a celebração de convênio.

Não é incomum verificarmos, que em muitas cidades brasileiras, alguns gestores de órgãos de trânsito designam mediante Portaria, ou até mesmo por simples credenciamento, policiais militares para atuarem como agentes da autoridade de trânsito desses órgãos, sem que para isso seja firmado convênio, o que está totalmente ilegal, destarte, tornando todas as autuações lavradas por esses policiais militares irregulares, e nulas de pleno direito, causando prejuízos á administração pública no que diz respeito à competência e legalidade destas ações. 

Para um melhor esclarecimento do tópico anterior, é importante trazer o constante no § 4º, do artigo 280 do CTB, bem como o conceito de AGENTE DA AUTORIDADE TRÂNSITO constante no Anexo I do CTB:

§ 4º. O agente da autoridade de trânsito competente para lavrar o auto de infração poderá ser servidor civil, estatutário ou celetista ou, ainda, policial militar designado pela autoridade de trânsito com jurisdição sobre a via no âmbito de sua competência(negritamos)

       AGENTE DA AUTORIDADE DE TRÂNSITO – pessoa, civil ou policial militar, credenciada pela autoridade de trânsito para o exercício das atividades de fiscalização, operação, policiamento ostensivo de trânsito ou patrulhamento. (negritamos).

Percebe-se, no § 4º, do artigo 280 do CTB, que o legislador deu a entender que a pessoa civil devidamente credenciada poderia exercer, além das atividades de fiscalização e operação de trânsito, também o policiamento ostensivo de trânsito, o que sabemos não ser possível, pois tal mister é de exclusiva competência das policias militares. Já o patrulhamento, por força do conceito contido no Anexo I do CTB, é função exercida pela Polícia Rodoviária federal (PRF), ao longo das rodovias e estradas federais. 

Ratificando o parágrafo anterior, afirma o douto Promotor de Justiça do Estado do Paraná, o Dr. Cássio Mattos Honorato, na sua esclarecedora obra SANÇÕES DO CÓDIGO DE TR6ANSITO BRASILEIRO (2004) que:

Considerando a competência exclusiva das Polícias Militares para o exercício da função de policiamento ostensivo, na forma do Decreto-Lei n. 667, de 02 de julho de 1969, e do Decreto n. 88.777, de 30 de setembro de 1983, ratificada pelo art. 144, § 4º, da Constituição de República de 1988, a atividade de policiamento de trânsito somente poderá ser exercida pelos órgãos de trânsito por meio dos membros da Polícia Militar.

Conforme o exposto até aqui, é importante destacar, que não basta ser o policial militar designado ou credenciado (ou até mesmo nomeado) pela autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via, é necessária e obrigatória a prévia celebração de convênio com o órgão ou entidade executivo de trânsito ou rodoviário. 

As Portarias de designação ou credenciamento são apenas documentos que materializam quais os policiais militares que atuarão na fiscalização em nome do órgão ou entidade de trânsito, tudo em conformidade com o convênio firmado. A designação, nomeação ou o credenciamento de policiais militares por portarias, sem a celebração de convênio, não tem respaldo legal para que os mesmos possam atuar e autuar em nome do órgão ou entidade executivo de trânsito ou rodoviário. 

Da mesma forma, não podem os agentes da autoridade de trânsito, sejam eles de órgãos de trânsito ou rodoviários estaduais ou municipais, serem designados, nomeados ou credenciados por portarias ou outro documento equivalente, sem que os mesmos sejam previamente aprovados em concurso público, para o exercício da atividade de agente de trânsito, conforme o constante no IncisoII, do artigo 37 da CF/88

“a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.”  

Sobre este aspecto, o mestre Julyver Modesto de Araújo assim se posiciona: 

Na área de trânsito, é infelizmente comum a “designação mediante Portaria” de servidores investidos em outro cargo ou emprego, para atuarem como agentes de trânsito (e às vezes, até de particulares, sem qualquer relação com a administração) – tal prática é completamente ilegal e pode acarretar responsabilidades aos gestores de trânsito e/ou aos agentes políticos que assim procederem

Não podemos olvidar o que está estabelecido naResolução do CONTRAN n. 371/10, que instituiu o Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito Vol. I,que “para exercer suas atribuições como agente da autoridade de trânsito, o servidor ou policial militardeverá ser credenciado, estar devidamente uniformizado, conforme o padrão da instituição, e no regular exercício de suas funções”.(negritamos). 

Para por fim a qualquer interpretação equivocada a cerca da competência dos agentes de transito, no que diz respeito à necessidade de sua investidura em cargo ou emprego público, a Emenda Constitucional 82/14, incluiu o parágrafo 10 ao artigo 144 da Constituição Federal, dando status constitucional à carreira de agentes de agentes de trânsito, conforme inciso II: 

§ 10º A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas:

(…)

II- compete, no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aos respectivos órgãos ou entidades executivos e seus agentes de trânsito, estruturados em carreira, na forma da lei. (sublinhamos)

Corroborando ainda com tais posicionamentos, trazemos a explicação do Tenente Coronel da Reserva da histórica Brigada Militar do Rio Grande do Sul, Ordeli Savedra Gomes, que na sua brilhante obra CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO Com Comentários Especiais para Concursos (7ªEdição) que assim dispõe:

É importante destacar que, caso o órgão executivo de trânsito ou rodoviário, que for realizar atividade de fiscalização, aplicando medidas administrativas e penalidades por infrações de trânsito, não o esteja realizando na plenitude de suas competências, e nos estritos limites circunscricionais, seu ato administrativo deverá ser nulo de pleno direito, vez que não se coaduna com os ditames legais. 

Em relação às competências dos órgãos executivos de trânsito ou rodoviários, sugiro a leitura da Resolução 66/98 do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), e da Portaria 59/07 (e suas alterações) do Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN). 

A lavratura do Auto de Infração de Trânsito (AIT) é um ato administrativo, e como tal, deve estar em consonância com os seus requisitos legais, dentre eles, destacamos o principal, a COMPETÊNCIA. 

Para o mestre Hely Lopes Meirelles, “Para a prática do ato administrativo a competência é a condição primeira de sua validade. Nenhum ato – discricionário ou vinculado – pode ser realizado validamente sem que o agente disponha de poder legal para praticá-lo”.

Do exposto, uma vez constatada a irregularidade na designação ou credenciamento de policiais militares ou agentes civis (estatutários ou celetistas) para o exercício de suas funções como agentes da autoridade de trânsito, falece de COMPETÊNCIA legal qualquer ato administrativo emanado por estes, pois conforme o professor de Direito Administrativo CAIO TACITO, “Não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma do direito”.

A principal novidade da Lei 9.503/97 que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a nosso ver, foi a inclusão (definitiva e irreversível)dos municípios ao Sistema Nacional de Trânsito, o qual é chamado por muitos de municipalização do trânsito. Com isso, muitas polícias militares do país recuaram de forma parcial, e até mesmo total, das missões de fiscalização de trânsito, por entenderem (de forma equivocada) que tal atribuição não era mais de sua competência, o que de certa forma trouxe muita confusão e prejuízos á fiscalização de trânsito, pois na época, muitos municípios não aderiram (e muitos ainda não aderiram) de imediato ao processo de municipalização, ficando um vácuo no processo de fiscalização. 

Desta forma, o CTB ampliou os poderes dos municípios (artigo 24 do CTB), principalmente no que diz respeito à fiscalização, atribuição antes exercida pelas polícias militares, o que desencadeouna época muitas discussões sobre o tema, surgindo algumas perguntas muito importantes tais como: COMO FICARIA A FISCALIZAÇAO DE TRÂNSITO NOS MUNICÍPIOS NÃO INTEGRADOS AO SISTEMA NACIONAL DE TRÂNSITO (SNT)? QUAL ÓRGAO IRIA REALIZAR A FISCALIZAÇÃO DAS INFRAÇOES DE TRÂNSITO DE COMPETÊNCIA MUNICIPAL PREVISTAS NO ARTIGO 24 DO CTB NOS MUNICPIOS NÃO INTEGRADOS AO SNT? O ESTADO (DETRAN) PODERIA ASSUMIR O TRÂNSITO NA AUSÊNCIA DE UM ORGAO MUNICIPAL DE TRÂNSITO? E A POLÍCIA MILITAR, PODERIA ASSUMIR A FISCALIZAÇÃO DE TRÂNSITO NESSES MUNICÍPIOS NÃO MUNICIPALIZADOS?

As respostas a essas perguntas renderam muitos debates técnico-jurídicos na época, pois muitos doutrinadores, especialistas na área de trânsito e juristas tinham opiniões diversas sobre o tema, o que causava certa insegurança jurídica na interpretação dessa temática. Mas o tema já está pacificado, pois não compete ao Estado (v.g. DETRAN) assumir as competências do município previstas no artigo 24 do CTB, ante a ausência de um órgão executivo municipal de trânsito, da mesma forma que não compete ás polícias militares, assumirem o papel de agentes fiscalizadores nessas circunstâncias.

Já vimos que, para que a Polícia Militar possa executar a fiscalização de trânsito, é necessário estar conveniada com o órgão de trânsito correspondente e, estarem seus prepostos, devidamente designados ou credenciados como agentes da autoridade de trânsito mediante portaria, para que seus atos sejam revestidos de legalidade e veracidade.

A Polícia Militar, na maioria dos estados da federação, é muitas das vezes a primeira (se não for a única) resposta estatal ante a eclosão da ruptura da ordem pública, e que como já visto, o trânsito em condições seguras, é motivo de tranquilidade pública, devendo ser repelido todo e qualquer ato que possa causar instabilidade na boa convivência entre as pessoas que circulam pelas vias públicas. Desta forma, é imperioso o papel das polícias militares na execução do policiamento ostensivo de trânsito, fins garantir a boa ordem entre os munícipes. 

Um caso atípico nessa questão de competência é a situação do Distrito Federal, pois como não existem municípios no DF, e sim cidades satélites, o Estado (DETRAN) assume ex vi, todas as funções relacionadas ao trânsito, conforme se depreende do disposto no § 1º, do artigo 24 do CTB que estabelece “As competências relativas a órgão ou entidade municipal serão exercidas no Distrito Federal por seu órgão ou entidade executivos de trânsito”.

O policial militar, durante a execução do policiamento ostensivo de trânsito, além de fiscalizar e controlar o fiel cumprimento da legislação de trânsito vigente (desde que devidamente credenciado pela autoridade de trânsito com circunscrição sobre a via) estará, de forma ostensiva, realizando o seu papel constitucional que é o de preservação da ordem pública. Assim, da mesma forma, como ele pode intervir de imediato para reprimir infrações de trânsito com grande potencial de risco aos usuários, poderá também reprimir atos relacionados com a segurança pública e, principalmente, no combate aos crimes de trânsito, que não raras vezes exigem uma ação mais enérgica por parte de quem as fiscaliza.

A simples leitura do texto referente ao art. 23 do CTB permite-nos inferir que compete expressamente às Polícias Militares, de forma clara e inequívoca, fazer a fiscalização por meio da celebração de convênio com os órgãos executivos e executivos rodoviários. Todavia, nos municípios, cuja integração ao Sistema Nacional de Trânsito não tenha se efetivado, entendo que, cabe à Polícia Militar, além das ações e operações de policiamento ostensivo de trânsito objetivando a preservação da vida, fiscalizar o cumprimento das normas em geral, em especial as que estão previstas no CTB e Resoluções do CONTRAN, sem portanto, aplicar as autuações pertinentes as infrações de competência exclusiva do município. Finalizo dizendo que, na prática, somente por intermédio do policiamento ostensivo de trânsito, executado diuturnamente sobre as vias públicas, quer sejam urbanas quer sejam rodoviárias, conseguem os órgãos executivos fiscalizar na sua plenitude a efetiva utilização das vias terrestres, bem como o cumprimento da legislação.

Pelo estudado, até aqui, fica claro que os municípios poderão firmar convênio com a Polícia Militar do Estado para a fiscalização das infrações de competência destes, porém fica claro também que quanto às atividades de policiamento ostensivo de trânsito é impossível que seja objeto de convênio. A atividade de policiamento ostensivo de trânsito é exclusiva das policiais militares e, portantoindelegável, conforme demonstrado exaustivamente no presente estudo.

Com o advento da Lei 14.071, de 13/10/20, (em vigor desde 12/04/21) que alterou significativamente muitos artigos do CTB, as questões relacionadas à integração dos municípios ao SNT, com a consequente criação do referido órgão, veio a tornasse menos burocrática com a nova redação dada ao § 2º, do artigo 24 ao CTB estabelecendo que “Para exercer as competências estabelecidas neste artigo, os Municípios deverão integrar-se ao Sistema Nacional de Trânsito, por meio de órgão ou entidade executivos de trânsito ou diretamente por meio da prefeitura municipal, conforme previsto no art. 333 deste Código. (negritamos). 

Atualmente, o presente assunto está regulamentado pela Resolução n. 811 do CONTRAN, de 15 de dezembro de 2020. (vide site do Ministério da Infraestrutura)

Assim, o vácuo deixado pelo CTB no que diz respeito a quem competiria assumir o trânsito na ausência de um órgão municipal de trânsito, dada a dificuldade burocrática e estrutural de sua criação e integração foi superado com a inclusão do § 2º ao artigo 25 do CTB onde esclarece que quando não houver órgão ou entidade executivos de trânsito no respectivo Município, o convênio de que trata o caput deste artigo poderá ser celebrado diretamente pela prefeitura municipal com o órgão ou entidade que integre o Sistema Nacional de Trânsito, permitindo inclusive, o consórcio com outro ente federativo.”.

Desta forma, caso haja interesse de algum município brasileiro em delegar às polícias militares a competência prevista no artigo 24 do CTB, no que diz respeito à fiscalização de trânsito, basta a prefeitura conveniar com a Polícia Militar, e mediante documento próprio (Portaria) designar ou credenciar os policiais militares para tal incumbência. 

É oportuno lembrar, que o artigo 320 do CTB, determina que “a receita arrecadada com a cobrança das multas de trânsito será aplicada, exclusivamente, em sinalização, engenharia de tráfego, de campo, policiamento, fiscalização e educação de trânsito.” (negritamos) 

Não poderia deixar de enfatizar, que mesmo na ausência de convenio firmado com órgãos ou entidades de transito ou rodoviários, para a execução da fiscalização, a Polícia Militar continua com a sua missão de prevenir e reprimir atos relacionados com a segurança pública e de garantir obediência às normas relativas à segurança do trânsito, assegurando a livre circulação e evitando acidentes, coordenando e controlando o trânsito, atendendo aos acidentes de transito (com ou sem vítimas) com a correspondente lavratura do Boletim de Acidente, socorrendo vítimas de acidentes, confeccionando o relatório de avarias (Resolução CONTRAN 810/20)e combatendo a prática dos crimes de trânsito.

Neste parágrafo, gostaria de esclarecer aos meus amigos policiais militares que trabalham diuturnamente na árdua missão de execução do policiamento ostensivo geral nas ruas de nossa cidade, independente de trabalharem ou não na fiscalização de trânsito, que mesmo em sinistros de trânsito (a terminologia acidente de trânsito foi substituída por sinistro de trânsito pela ABNT NBR 10697:2020) com vítimas, o agente policial que primeiro chegar ao local do acidente, independentemente da chegada da perícia ou da autoridade policial, e constatar que os veículos estejam posicionados de forma a causar perigo, não só para os seus ocupantes, como também para os demais usuários da via, bem como as vítimasestiverem em posição e local que comprometam a segurança viária, ambos podem ser removidos do local, mediante a confecção do Boletim de Acidente de Trânsito, conforme se depreende da Lei 5.970 de 11 de Dezembro de 1973, que se encontra em pleno vigor: 

Art 1º – Em caso de acidente de trânsito, a Autoridade ou Agente Policial que primeiro tomar conhecimento do fato poderá autorizar, independentemente de exame do local, a imediata remoção das pessoas que tenham sofrido lesão, bem como dos veículos nele envolvidos, se estiverem no leito da via pública e prejudicarem o tráfego.

Parágrafo Único – Para autorizar a remoção, a Autoridade ou Agente Policial lavrará o Boletim de ocorrências, nele consignando o fato, as testemunhas que o presenciaram e todas as demais circunstâncias necessárias ao esclarecimento da verdade.”

Em relação à Lei 5.970/73, o Coronel Marlon Jorge Teza da Polícia Militar de Santa Catarinaassim se posiciona: 

Como vimos, o legislador colocou a vida humana e o interesse coletivo acima do interesse técnico, por julgar que procedimentos menos sofisticados (Boletim de Ocorrência) seriam o bastante para compor o quadro de investigação e apuração da culpabilidade nos casos de Acidentes de Trânsito, ou seja as Leis 5.970/73 e 6194/74 garantem à Polícia Militar, através de seus policiais-militares de serviço, a celeridade no restabelecimento da ordem pública nos casos de acidente de trânsito, mesmo havendo vítimas resultantes do mesmo acidente.

O objetivo desse artigo foi tão somente trazer aos leitores uma visão técnica do real papel da Polícia Militar no trânsito, quer seja na execução do policiamento ostensivo de trânsito, quer seja na fiscalização, sob a ótica de quem serviu à Polícia Militar do Amazonas por 30 anos, dos quais grande parte, dedicados ao policiamento ostensivo de transito, sendo uma delas como comandante do Batalhão de Trânsito da Polícia Militar do Amazonas (BPTran), e com a experiência de mais de 20 anos como instrutor de legislação de trânsito nos Centros de Formação de Condutores (CFC), as antigas autoescolas.

Procurei trazer as informações mais pertinentes sobre o assunto, não com a intenção de esgotá-lo, mas tão somente esclarecer pontos que sempre foram dúvidas, não só dos usuários das vias, como do próprio policial militar encarregado da fiscalização.  

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