Fonte: Alcio Vargas Costa Sampaio
Antes de enfrentarmos o tema proposto neste trabalho, é importante esclarecer que dirigir “sem possuir Carteira Nacional de Habilitação, Permissão para Dirigir ou Autorização para Conduzir Ciclomotor” é uma infração de trânsito tipificada no artigo 162, inciso I, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), de natureza gravíssima, penalizada com multa no valor de R$ 880,41, tendo como medida administrativa a retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado.
A Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e a Permissão para Dirigir (PPD), são consideradas documentos de habilitação, conforme o § 3º, do artigo 269 do CTB. Mas existe alguma diferença entre elas? Sim!
Segundo consta no § 2º, do artigo 148 do CTB, ao candidato aprovado será conferida a Permissão para Dirigir, com validade de um ano, ou seja, é um documento provisório, e a Carteira Nacional de Habilitação será conferida ao condutor no término de um ano, desde que não tenha cometido nenhuma infração de natureza grave ou gravíssima ou seja reincidente em infração média (§ 3º do artigo 148), desta forma, a CNH é um documento definitivo de habilitação, porém, sujeito à suspensão ou cassação em casos específicos.
Julgamos importante esclarecer a diferença entre dirigir sem possuir CNH/PPD e dirigir sem portar CNH/PPD. Sem possuir está relacionado ao fato do condutor não ser devida e legalmente habilitado, ou seja, não passou pelo devido processo de habilitação, conforme estabelece o CTB, no seu CAPÍTULO XIV (DA HABILITAÇÃO) e na RESOLUÇÃO do CONTRAN Nº 789, DE 18 DE JUNHO DE 2020 (alterada pela Resolução 849/21), resolução que consolida normas sobre o processo de formação de condutores de veículos automotores e elétricos.
Sem portar, é o contrário, o condutor foi aprovado em todos os exames previstos legalmente para a obtenção da CNH e, portanto, em condições legais e técnicas para a condução de um veículo automotor, (obviamente na categoria para o qual se habilitou), no entanto, ao ser abordado em uma fiscalização de trânsito, não a esteja portando naquele momento, por algum motivo como: esquecimento, perda, extravio – Dirigir sem portar o referido documento de habilitação, incorrerá o infrator na infração de transito prevista no artigo 232 do CTB, de natureza leve, 3 pontos no prontuário do infrator e multa no valor de R$ 88,38.
Lembrando, que foi Incluído ao artigo 159 do CTB, pela Lei nº 14.071, de 2020, o § 1º-A, estabelecendo que “O porte do documento de habilitação será dispensado quando, no momento da fiscalização, for possível ter acesso ao sistema informatizado para verificar se o condutor está habilitado”.
Com essa mudança recente na legislação de trânsito, se no ato da fiscalização o agente de trânsito ou policial militar designado conseguirem através da devida consulta ao sistema informatizado disponível comprovarem ser aquele condutor habilitado, não restará configurada a infração do artigo 232.
Desde a entrada em vigor do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97), em 22 de janeiro de 1998, muitas dúvidas fizeram parte do cotidiano de muitos usuários das vias, em particular dos condutores de veículos, sejam eles profissionais ou não. Uma dessas dúvidas se refere ao tema deste singelo artigo: DIRIGIR SEM POSSUIR CNH/PPD É CRIME OU APENAS UMA INFRAÇÃO DE TRÂNSITO?
Tal dúvida deve-se ao fato de que no atual CTB, diferentemente do anterior (Lei 5.108/66), trouxe um capítulo inteiramente voltado aos Crimes de Trânsito, no caso, o CAPÍTULO XIX (DOS CRIMES DE TRÂNSITO), na Seção II, que trata Dos Crimes em Espécie, consta o artigo 309, tipificando o seguinte crime:
Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Recordo-me que na época que o CTB passou a vigorar, as informações sobre esse novo crime eram as mais variadas e imprecisas possíveis, inclusive com grandes debates doutrinários. Porém, com o avanço das tecnologias de acesso às informações e um número maior de doutrinadores escrevendo e debatendo sobre o tema, tal situação passou a ter um entendimento mais consolidado, inclusive com muitos julgados de várias cortes do país acerca do tema.
Quando chegamos em Manaus, no ano de 1992, oriundo da saudosa Escola de Formação de Oficiais, da Polícia Militar do Estado do Rio de janeiro, ainda como Aspirante a Oficial da briosa Polícia Militar do Amazonas, vigia ainda o Código Nacional de Trânsito de 1966 (CNT) e seu Regulamento (Decreto n. 62.127, de 16.01.1968 – RCNT), onde em ambas as legislações nada falavam do crime de dirigir sem possuir a devida habilitação, apenas tipificavam tal conduta como mera infração administrativa.
Naquela época, até a vigência do atual CTB, quando em nossas operações de fiscalização (bloqueios policiais), ao nos depararmos com um condutor que não possuía a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), além de adotarmos as medidas de autuação administrava por infringência à lei de trânsito, no caso, dirigir sem possuir CNH, o condutor era conduzido ao distrito policial para a adoção das medidas de polícia judiciária cabíveis, por infringência ao artigo 32 do DECRETO-LEI Nº 3.688, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941 (leis das Contravenções Penais – LCP), que assim estabelece:
Art. 32. Dirigir, sem a devida habilitação, veículo na via pública, ou embarcação a motor em águas públicas: Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.
Atualmente, o artigo 32 da LCP encontra-se derrogado, valendo somente para quem dirigir embarcação a motor sem a devida habilitação em águas públicas, conforme entendimento firmado na SÚMULA 720 do STF: “O art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro, que reclama decorra do fato perigo de dano, derrogou o art. 32 da Lei das Contravenções Penais no tocante á direção sem habilitação em vias terrestres”.
Observem que na referida súmula, é possível verificarmos que consta “decorra do fato perigo de dano”, extraído da própria lei, no caso, no artigo 309 do CTB.
Feitas estas considerações, iremos adentrar com mais profundidade no tema que trata da direção de veículo automotor sem a devida habilitação e sua relação com o crime do artigo 309 do CTB, que traz a seguinte tipificação: “Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano”. (negritamos)
Depreende-se do item destacado no tópico anterior, que se exige para a configuração deste delito, que o condutor esteja causando um perigo concreto, e não abstrato, pois precisa no ato da direção, estar colocando em risco a segurança viária, a coletividade e a incolumidade pública, realizando manobras arriscadas e outros atos anormais à direção do seu veículo.
Para o renomado jurista Damásio E. de Jesus, Crimes de Trânsito, p. 203, Ed. Saraiva, 4ª edição, leciona que:
“Não basta a simples conduta de dirigir veículo sem habilitação legal para aperfeiçoar o crime. Exige-se que o motorista dirija o veículo sem habilidade e de forma anormal (fazendo ziguezague, fechando outros veículos, “aos troncos e barrancos”, aos solavancos, invadindo cruzamento, subindo com o veículo na calçada, avançando sinal vermelho, ultrapassando pela direita, na contramão de direção, abalroando outros veículos, etc.).”.
Ainda nesta mesma linha de raciocínio, osautores Ordeli Savedra Gomes, Luís Carlos Paulino, Arnold Torres Paulino e Priscila Moron Gomes, na obra CRIMES DE TRÂNSITO, p. 150, Ed. Juruá, 2ªedição, 2021 esclarecem:
“A legislação não exige que determinada pessoa seja vitimada com a ocorrência de um acidente, mas é necessário que o agente conduza o veículo de forma anormal, como em ziguezague, ultrapassando de forma perigosa, dirigindo na contramão, expondo, desta forma, a coletividade a perigo de dano”.
Para o amigo Julyver Modesto de Araújo, grande mestre e doutrinador na área de trânsito, na sua brilhante obra LIÇÕES DE DIREITO PENAL PARA OS PROFISSIONAIS DE TRÂNSITO, EDITORA CEAT, p. 246, assim nos esclarece:
“Como o tipo penal exige, para a efetiva ocorrência do crime, da existência de um perigo de dano, não haverá qualquer punição criminal ao condutor inabilitado que conduz o veículo de forma normal, sem colocar em risco os outros usuários (neste caso, caberá apenas a sanção administrativa, pelo cometimento da infração de trânsito do art. 162, inciso I)”
Diante do contido no próprio artigo 309 e dos exemplos destes renomados estudiosos e doutrinadores, não nos resta dúvida que para o aperfeiçoamento do crime de trânsito constante no artigo 309 do CTB, não basta dirigir em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, é imperioso que esteja gerando perigo de dano, do contrário, são meras infrações de trânsito tipificadas no artigo 162, I e II do CTB.
Corroborando com o nosso entendimento, os autores Ordeli Savedra Gomes e outros, na obra CRIMES DE TRÂNSITO, p. 151, Ed. Juruá, 2ªedição, 2021 nos ensinam:
“Em sentido contrário, se o agente for flagrado dirigindo veículo automotor em via pública, sem habilitação, ou com o direito de dirigir cassado, mas sem colocar em risco a coletividade, portanto, de forma normal, não estará cometendo este crime de trânsito e sim, tão somente, a infração de trânsito prevista no art. 162, I ou II, conforme não seja habilitado ou esteja com o seu direito de dirigir cassado”.
Extrai-se do artigo 309 do CTB, a possibilidade do condutor estar cometendo o crime, por estar conduzindo com o seu direito de dirigir CASSADO, gerando perigo de dano.
A cassação da CNH é uma penalidade prevista no artigo 256, inciso V, do CTB, que pode ocorrer nas situações previstas nos incisos do artigo 263 do CTB, destarte, ocorrendo a perda definitiva de seus efeitos legais.
Porém, conforme o § 2º do artigo 263, decorridos dois anos da cassação da Carteira Nacional de Habilitação, o infrator poderá requerer sua reabilitação, submetendo-se a todos os exames, na forma estabelecida pelo CONTRAN, conforme Resolução 723/18, alterada pela resolução 844/21.
Esclarecemos que se o condutor for flagrado dirigindo com a sua CNH cassada dentro do prazo de cassação, será autuado pelo artigo 162, II do CTB (dirigir com a CNH cassada); mas se for flagrado conduzindo com documento de habilitação cassado há mais de 2 anos, será enquadrado no artigo 162, I do CTB (dirigir sem possuir CNH), conforme consta no Manual Brasileiro de Fiscalização de Trânsito- MBFT, Resolução 985/22, na ficha de fiscalização específica.
Alguns doutrinadores entendem que também restará tipificado o crime do artigo 309 do CTB, o fato do condutor dirigir com Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir de categoria diferente da do veículo que esteja conduzindo, infração de trânsito constante no artigo 162, inciso III do CTB, uma vez que consta no próprio artigo 309 “sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação”, pois se um condutor estiver dirigindo um ônibus para o qual se exige a Categoria D (transporte de passageiros cuja lotação exceda a 8 (oito) lugares), não pode estar portando no momento da abordagem uma CNH ou PPD na Categoria A (exclusiva para conduzir veículos de duas ou três rodas), neste caso, além de infração de trânsito, será o crime do artigo 309, caso esteja gerando perigo de dano.
Por fim, esclarecemos que para a configuração do crime de trânsito tipificado no artigo 309 do CTB, é necessário ainda, que o mesmo ocorra em via pública, do contrário, se ocorrer em vias particulares (v.g. fazendas, chácaras, sítios), o fato será atípico.
Esperamos com essas informações, ter trazido a lume questões que possam esclarecer os leitores e, principalmente, aqueles profissionais que atuam na área de trânsito no seu dia-a-dia, sem, no entanto ter a pretensão de esgotá-lo, uma vez que as mudanças na legislação de trânsito são dinâmicas e controversas.
ALCIO VARGAS COSTA SAMPAIO, Coronel da Reserva da Polícia Militar do Amazonas, Especialista em Gestão e Direito de Trânsito (CEAT), Especialista em Engenharia, Operação e Fiscalização de Trânsito (CEAT), Especialista em Policiamento de Transito Urbano, pelo Comando de Policiamento de Trânsito – (CPTran/PMESP), Especialista em Policiamento Rodoviário, pelo Comando de Policiamento Rodoviário – (CPRv/PMESP), Especialista em Fiscalização de Transporte de Produtos Perigosos, pelo Comando de Policiamento Rodoviário (CPRv/PMESP), Curso de Motociclista Militar e Batedor (EB/1995), Cursos de Instrutor, Examinador e Diretor Geral e de Ensino dos CFCs (DETRAN/AM), Instrutor de Trânsito por mais de 20 anos, nos Centros de Formação de Condutores (CFCs), e instrutor de legislação de Trânsito nos cursos de formação e capacitação na PMAM.