“QUEM SÓ ANDA DE CARRO TAMBÉM DEVERIA PAGAR PELO TRANSPORTE PÚBLICO”
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Mesmo que não se dê conta disso, quem só anda de automóvel também se beneficia diariamente do transporte público. Os empregados dos supermercados, dos hospitais, das escolas, dos restaurantes, do serviço de coleta de lixo, da operadora de telefonia, das concessionárias de energia elétrica, gás e água — a maioria deles chega ao trabalho de ônibus, metrô ou trem. Não é um absurdo pensar, portanto, que o motorista que usa o transporte individual também deveria ajudar a pagar a conta de um serviço que beneficia toda a sociedade, a exemplo do que acontece com a saúde e a educação.

É esse o raciocínio de Sérgio Avelleda, coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. “Quem vai trabalhar de ônibus emite muito menos dióxido de carbono do que quem vai de carro, ocupa menos espaço na cidade e diminui a sinistralidade do trânsito. Portanto, ele promove uma série de externalidades positivas. Contudo, é convocado para pagar sozinho a conta do serviço de transporte público”, diz Avelleda, que foi secretário de Mobilidade e Transportes da capital paulista (2017-2018), presidente do Metrô de São Paulo (2011-2012) e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM (2008-2011).

Para ele, que nasceu em Curitiba e recebeu no último dia 1º de dezembro o título de Cidadão Paulistano por suas contribuições na área de mobilidade urbana, realizar um programa ambicioso para remodelar o financiamento do transporte público deve ser uma das prioridades do novo governo que toma posse no dia 1º de janeiro de 2023. Avelleda espera que o próximo governo federal assuma o papel de grande articulador das políticas públicas e das boas práticas em mobilidade urbana, definindo as estratégias para promover um transporte mais limpo, seguro, inclusivo e sustentável.

Confira na entrevista a seguir:

Qual é o objetivo do Núcleo de Mobilidade Urbana que o sr. coordena?

O Laboratório, como diz o próprio nome, é um lugar para pesquisar e discutir questões relativas às cidades do Brasil. É um campo vastíssimo de conhecimento, porque uma cidade tem várias dimensões ou camadas, como planejamento urbano, habitação, saneamento, educação e outras. E uma das camadas mais importantes é a da mobilidade urbana. Pela complexidade que nossas cidades alcançaram, fazer com que as pessoas e os bens se movimentem, garantindo acessos eficientes, sustentáveis, inclusivos e seguros, é um grande desafio. Então, no Núcleo de Mobilidade Urbana o que fazemos é pesquisar temas relativos ao movimento de pessoas e bens. Nós pesquisamos, debatemos, estabelecemos espaços de diálogos com a sociedade civil, com a academia, com entes governamentais, e também reproduzimos conhecimento por meio das atividades de ensino. Desenvolvemos cursos — neste ano, por exemplo, lançamos o primeiro curso sobre mobilidade urbana na área de educação executiva no Insper — e oferecemos matérias eletivas na graduação e na pós-graduação.

Quais são as principais áreas de mobilidade urbana que vocês estudam no Núcleo?

Fundamentalmente, estamos focados na questão do transporte público, que é a espinha dorsal do sistema de mobilidade urbana na cidade. Isso inclui temas relativos a operação, financiamento e planejamento do transporte público. Outro tema que nos é muito caro é a segurança viária, uma vez que o trânsito ainda é a maior causa de mortes evitáveis no planeta, e o Brasil é um dos campeões mundiais em mortes no trânsito. Também é muito relevante o tema da logística urbana — como distribuir bens de maneira eficiente, segura e sustentável nas cidades. E todos esses temas são recortados com a perspectiva da sustentabilidade, da inclusão social, da diminuição das desigualdades e da segurança viária.

Estamos em um período de transição de governo. Em sua opinião, qual deveria ser a prioridade do próximo governo federal na área de mobilidade urbana?

Eu penso que são várias as tarefas à espera do novo governo. O tema da mobilidade urbana diz respeito às cidades, mas isso não quer dizer que o governo federal não tenha um papel a cumprir. O primeiro, e primordial, é atuar como um grande articulador das políticas públicas e das boas práticas. O governo federal tem o poder de financiar projetos ou de autorizar financiamentos de projetos, bem como a capacidade de mobilizar assistência técnica. Então, acho que a primeira coisa que o governo deve fazer é uma pauta: qual é o objetivo estratégico do país no campo da mobilidade urbana? Imagino que seja contribuir para a redução dos efeitos das mudanças climáticas, uma vez que o transporte é o setor responsável por uma parte significativa das emissões — nas cidades, mais de 60% das emissões decorrem do transporte.

Em segundo lugar, realizar um programa ambicioso para remodelar o financiamento do transporte público, que no Brasil sempre se baseou na distribuição dos custos entre os usuários. Você calculava quanto custava a produção do serviço e distribuía esse custo entre o número de usuários pagantes. Esse modelo faliu, especialmente por causa da pandemia, quando os custos fixos se mantiveram e o número de usuários diminuiu. Hoje precisamos de um grande pacto nacional para tratar do financiamento do transporte com a participação da União, dos estados e dos municípios.

Terceiro, o novo governo deve ter como prioridade também a segurança viária. O Brasil é um país que mata 19 pessoas a cada 100 mil habitantes no trânsito. São 130 mortes por dia no trânsito. É como se um Boeing 737 caísse todos os dias no país. Imagine qual seria a reação da sociedade se caísse um avião todos os dias, matando 130 pessoas. Na terceira queda de avião, parava tudo para investigar o que estaria acontecendo. Quanto às mortes no trânsito, fomos induzidos a acreditar que é algo natural e inevitável. Isso não é verdade. Os países ricos têm 52% da frota mundial de veículos e são responsáveis por apenas 8% das mortes no trânsito. Isso mostra que há políticas públicas que podem ser feitas nessa área.

Falta também no Brasil um plano nacional de mobilidade elétrica, a exemplo do que existe em nações como a China, o Chile e a Colômbia. Precisamos substituir a matriz energética do sistema de transporte por uma energia mais limpa. A eletricidade é uma das soluções. Podem ser outras também, combinadas. Mas precisamos, de fato, reduzir a nossa dependência por combustíveis fósseis e eliminar a emissão de carbono no sistema de transporte onde isso for possível.

O sr. é a favor de o país ter um Ministério das Cidades?

Completamente. Hoje, mais de 65% da população brasileira vive nas cidades. A força que o governo federal tem em termos de recursos, de conhecimento e de capacidade de articulação é fundamental para dar um rumo para as nossas cidades. O governo tem um papel fundamental de dirigir e articular políticas públicas com objetivos estratégicos. Imagine se cada cidade tivesse um rumo no que diz respeito à segurança viária. Precisamos de um governo que diga: o caminho é este e vamos todos remar na mesma direção. Vamos reduzir a velocidade no trânsito, aumentar a fiscalização, rever a segurança dos automóveis, trabalhar para redesenhar ruas, avenidas e estradas para que ninguém morra caso o motorista cometa um erro. Portanto, eu vejo como fundamental a recriação do Ministério das Cidades. Existe também a questão do status político. Quando temos um ministro de Estado tratando exclusivamente do tema das cidades, estamos falando de alguém com acesso ao presidente da República, aos presidentes das Casas Legislativas, ao Tribunal de Contas, ao Poder Judiciário. Ele tem um peso político. Mas não é só isso. Há também o aspecto do desenho institucional. Hoje os temas de cidades estão dispersos entre diversos ministérios.

Uma das marcas do governo que está terminando foi a tentativa de coibir o que chamava de “indústria da multa”, por meio da flexibilização da legislação de trânsito. Qual a sua opinião sobre o legado que o atual governo vai deixar nessa área?

Essa expressão, “indústria da multa”, é uma lenda urbana. Toda indústria, para funcionar, precisa de insumos. Uma indústria de carros precisa de aço, uma indústria de computadores precisa de chips, uma indústria de roupas precisa de algodão. A indústria da multa, se é que existe, também precisa de insumo. E qual é o insumo dela? A infração de trânsito. Se não cometermos infração de trânsito, quebramos a indústria da multa. Um prefeito pode colocar 25 mil radares na cidade. Se ninguém descumprir a legislação de trânsito, não existe essa “indústria da multa”. Se há infrações, elas têm que ser coibidas. Ou então caminhamos para o faroeste, uma terra sem lei, onde todo mundo pode fazer o que quiser. E o resultado disso é o caos. Há um estudo muito interessante conduzido pela CET [Companhia de Engenharia de Tráfego] em São Paulo. Eles seguiram aleatoriamente alguns automóveis e anotaram quantas infrações os motoristas cometiam, como não dar a seta, desrespeitar o semáforo ou usar o celular enquanto dirigiam. Com base nessa amostra, a CET fez um cálculo extrapolando para o número total de carros em São Paulo. E descobriu que ela tem a capacidade de multar apenas 1,5% das infrações que são cometidas na cidade.

O atual governo, infelizmente, entendeu que existia uma indústria da multa e trabalhou não para eliminar a infração e sim para acabar com a fiscalização. Por isso determinou a desativação de radares nas rodovias federais, aprovou norma que impede o uso de radares móveis em vias de até 40 quilômetros por hora, proibiu a instalação de radares fixos atrás de viadutos, árvores e postes, aumentou o número de pontos que o motorista pode acumular antes de perder a carteira de habilitação. O que espero é que o novo governo reveja essas decisões que só favorecem um tipo de gente: o infrator. A imensa maioria dos motoristas cumpre a lei e não toma multa. Em São Paulo, apenas 5% dos motoristas concentram 90% das multas. Quando você flexibiliza a legislação, privilegia quem descumpre a lei.

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, anunciou recentemente que pediu à SPTrans, órgão responsável pela gestão do sistema de transporte público por ônibus na cidade, para realizar um estudo sobre a viabilidade jurídica e financeira de adotar tarifa zero, para incentivar o transporte coletivo. O que acha dessa ideia?

O que está por trás dessa discussão é o modelo de financiamento do transporte público, conforme já mencionei anteriormente. O modelo desenhado nas cidades brasileiras nas últimas décadas é somar o custo de produção do serviço e ratear entre os usuários. Então, se você não usa transporte público, você não paga nada por ele. Porém, mesmo não usando transporte público, você se beneficia dele. Se você vai ao supermercado, é porque o estoquista que trabalha ali usou transporte público. Se você tem uma colaboradora doméstica, ela só chega à sua casa porque usa transporte público. A economia só funciona porque existe transporte público. Quem vai trabalhar de carro emite 45 vezes mais dióxido de carbono do que quem vai de ônibus. Uma pessoa que usa ônibus ocupa muito menos espaço na cidade do que quem vai de automóvel. E quem vai de ônibus contribui muito para diminuir a sinistralidade do trânsito. Então, o usuário de ônibus promove uma série de externalidades positivas. Contudo, ele é convocado para pagar sozinho a conta do serviço de transporte. Portanto, quem vai de carro já usufrui de tarifa zero. A cidade teve que pagar o asfalto para esse motorista se locomover, o semáforo, a engenharia de tráfego, os custos com vítimas das doenças respiratórias e vítimas de trânsito. Nossa lógica é tão esquisita que, no domingo, não há nenhum desconto na tarifa de ônibus. Mas a Zona Azul é de graça. A cidade abre mão de arrecadar o valor do estacionamento de veículos individuais aos domingos, no entanto não deixa de cobrar de quem usa transporte público. É uma inversão completa.

Claro que, se você tem um automóvel, poderá argumentar que já paga IPVA e, por isso, não precisaria pagar mais nada para usar a rua. Note, porém, que eu pago IPTU do meu apartamento e nem por isso vou pedir água, luz, internet e gás de graça. Eu pago IPTU, mas tenho que pagar também a infraestrutura para usar meu imóvel. Se eu tivesse um carro, deveria pagar IPVA e também a infraestrutura disponibilizada para eu usar meu automóvel.

No fundo, o que estamos discutindo quando falamos em tarifa zero é o seguinte: é correto que o custo de um serviço de transporte essencial, que beneficia toda a sociedade, seja rateado apenas entre os usuários? Me parece que não. Precisamos olhar para o serviço de transporte da mesma maneira que olhamos para a saúde e a educação. Claro que não é fácil. Não é uma coisa que dá para implantar de um dia para outro, porque teria um impacto muito grande na demanda e nas finanças. Se São Paulo tivesse dinheiro para zerar a tarifa do transporte público amanhã, haveria um colapso no sistema de ônibus, porque a demanda iria explodir. Eu acredito na possibilidade de adotar tarifa zero numa cidade como São Paulo, mas ela será implantada passo a passo. O mais importante é buscarmos novas fontes de financiamento, porque vamos precisar de novos recursos para isso, além de discutir a justiça dessa economia que isenta quem vai de carro e cobra de quem vai de ônibus.

Numa cidade como a capital paulista, de que maneira seria possível incentivar mais pessoas a usarem o transporte público em vez do individual?

Primeiro, precisamos priorizar o transporte público, especialmente na gestão do espaço. Quanto mais faixas exclusivas e mais corredores de ônibus houver, mais rápido e eficiente o ônibus vai ser. E quanto mais rápido e eficiente for o ônibus, comparado ao automóvel, mais pessoas vão preferir o ônibus. Por isso eu não me preocuparia, se eu fosse o prefeito, com congestionamento de carros. Eu me preocuparia com ônibus não produtivo. Nas vias onde ocorre congestionamento de automóveis, eu abriria faixas exclusivas para o ônibus andar mais rápido. Além disso, precisamos melhorar os meios de pagamento e as integrações. Há muita coisa para melhorar, entretanto o transporte público já é bem melhor do que imaginam as pessoas que não usam.

Qual a sua opinião sobre pedágio urbano? É uma medida a ser considerada nas metrópoles brasileiras?

Acho que tem um potencial para ajudar sob dois grandes aspectos. O primeiro é diminuir o uso do carro, fazer com que as pessoas usem menos esse tipo de veículo, o que vai melhorar muito a fluidez da mobilidade na cidade. E, segundo, os recursos arrecadados iriam diretamente para reduzir as tarifas do transporte público. Ou seja, promoveria um subsídio de quem usa carro para quem usa ônibus. É o mesmo raciocínio utilizado nas estradas. Quem paga pela manutenção das estradas é quem usa as estradas, não é mais o contribuinte. Usou, pagou. Esse conceito deveria ser amplificado para as vias públicas.

Outro ponto que deveria receber atenção das cidades é a mobilidade ativa, ou seja, a mobilidade não motorizada, o que inclui medidas como ampliar as faixas para bicicletas e melhorar as calçadas.

Sem dúvida. A mobilidade ativa é a mais sustentável, democrática e barata forma de se locomover e a que pode proporcionar uma cidade mais vibrante, segura e economicamente mais eficiente. Para que isso aconteça, primeiro precisamos atuar no redesenho do planejamento urbano, que é algo mais estratégico. Precisamos conectar e densificar mais a cidade, aproximar zonas residenciais das zonas de oferta de emprego. Esse modelo de as pessoas morarem longe do bairro rico onde trabalham ocasiona uma ineficiência brutal no sistema de mobilidade. Precisamos começar a pensar que a prefeitura talvez devesse comprar terrenos nas áreas nobres e construir moradias de interesse social para que as pessoas morem perto de onde trabalham. Isso geraria mais caminhada e mais uso de bicicletas. Mas é preciso olhar para a infraestrutura. No Brasil, as prefeituras só fazem o recapeamento do asfalto. Ninguém cuida das calçadas, porque a legislação diz que isso é competência do proprietário do imóvel. Contudo, o dono do imóvel costuma olhar para a calçada como um instrumento de acesso à sua casa, não como uma via de passagem para transeuntes. Em São Paulo há um plano estratégico que autoriza a prefeitura a assumir a gestão das calçadas. É preciso que o poder público assuma o dever de cuidar das calçadas.

A Política Nacional de Mobilidade Urbana completou dez anos em 2022. Ela surtiu o efeito desejado ou ainda falta muito para avançar?

Não atingimos o ideário da lei, porém houve muitos avanços. Várias cidades, por exemplo, reduziram a letalidade no trânsito e fizeram seus planos municipais de mobilidade urbana desenhando um transporte mais sustentável. Hoje vemos muito mais ciclovias nas cidades brasileiras, e não só em São Paulo. Estive dias atrás no Guarujá para dar uma palestra e só nessa cidade já são 70 quilômetros de ciclovias, algo preconizado no Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Então, acho que houve avanços significativos, que precisam ser reconhecidos. Agora, é claro que não é perfeito e há muita coisa ainda a fazer. Precisamos de um transporte limpo, com mais olhar para a mobilidade ativa e para a integração metropolitana — essa é uma grande deficiência, pois ainda não temos no Brasil autoridades metropolitanas para fazer a gestão única dos sistemas de transporte nesses aglomerados de várias cidades. Mas eu reputo que houve um grande avanço e que a tarefa agora é conseguir aprofundar e disseminar as boas práticas.

Fonte: Trânsito WeB

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